Ao pôr do sol, pela tristeza
Da meia-luz crepuscular,
Tem a toada de uma reza
A voz do mar.
Aumenta, alastra e desce pelas
Rampas dos morros, pouco a pouco,
O ermo de sombra, vago e oco,
Do céu sem sol e sem estrelas.
Tudo amortece; a tudo invade
Uma fadiga, um desconforto...
Como a infeliz serenidade
Do embaciado olhar de um morto.
Domada então por um instante
Da singular melancolia
De em torno- apenas balbucia
A voz piedosa do gigante.
Toda se abranda a vaga hirsuta,
Toda se humilha, a murmurar...
Que pede ao céu que não a escuta
A voz do mar?
-II-
Estranha voz, estranha prece
Aquela prece e aquela voz,
Cuja humildade nem parece
Provir do mar bruto e feroz;
Do mar, pagão criado às soltas
Na solidão, e cuja vida
Corre, agitada e desabrida,
Em turbilhões de ondas revoltas;
Cuja ternura assustadora
Agride a tudo que ama e quer,
E vai, nas praias onde estoura,
Tanto beijar como morder...
Torvo gigante repelido
Numa paixão lasciva e louca,
É todo fúria: em sua boca
Blasfema a dor, mora o rugido.
Sonha a nudez: brutal e impuro,
Branco de espuma, ébrio de amor,
Tenta despir o seio duro
E virginal da terra em flor.
Debalde a terra em flor, com o fito
De lhe escapar, se esconde — e anseia
Atrás de cômoros de areia
E de penhascos de granito:
No encalço dessa esquiva amante
Que se lhe furta, segue o mar;
Segue, e as maretas solta adiante
Como matilha, a farejar.
E, achado o rastro, vai com as suas
Ondas e a sua espumarada
Lamber, na terra devastada,
Barrancos nus e rochas nuas...
-III-
Mais formidável se revela,
E mais ameaça, e mais assombra
A uivar, a uivar, dentro da sombra
Nas fundas noites de procela.
Tremendo e próximo se escuta
Varrendo a noite, enchendo o ar,
Como o fragor de uma disputa
Entreo tufão, o céu e o mar.
Em cada ríspida rajada
O vento agride o mar sanhudo:
Roça-lhe a face, com o agudo
Sibilo de uma chicotada.
De entre a celeuma, um estampido
Avulta e estoura, alto e maior,
Quando, tirano enfurecido,
Troveja o céu ameaçador.
De quando em quando, um tênue risco
De chama vem, da sombra em meio...
E o mar recebe em pleno seio
A cutilada de um corisco.
Mas a batalha é sua, vence-a:
Cansa-se o vento, afrouxa... e assim
Como uma vaga sonolência
O luar invade o céu sem fim...
Donas do campo, as ondas rugem;
E o monstro impando de ousadia,
Pragueja, insulta, desafia
O céu, cuspindo-lhe a salsugem.
-IV-
A alma raivosa e libertina
Desse tenaz batalhador
Que faz do escombro e da ruína
Como os troféus do seu amor;
A alma rebelde e mal composta
Desse pagão e desse ateu
Que retalia e dá respostas
À mesma cólera do céu;
A alma arrogante, a alma bravia
Do mar, que vive a combater,
Comove-se à melancolia
Conventual do entardecer...
No seu clamor esmorecido
Vibra, indistinta e espiritual,
Alguma coisa do gemido
De um órgão numa catedral.
E pelas praias aonde descem
Do firmamento - a sombra e a paz;
E pelas várzeas que emudecem
Com os derradeiros sabiás;
Ouvem os ermos espantados
Do mar contrito no clamor
A confidência dos pecados
Daquele eterno pecador.
Escutem bem... Quando entardece,
Na meia-luz crepuscular
Tem a toada de uma prece
A voz tristíssima do mar...