Gregorio de Matos Guerra

23 December 1636 - 26 November 1696 / Bahia

Liras

Oh não te espantes não, notomia,

Que se atreva a Bahia

Com oprimida voz, com plectro esquio

Cantar ao mundo teu rico feitio,

Que é já velho em Poetas elegantes

O cair em torpezas semelhantes.

Da Pulga acho, que Ovídio tem escrito,

Lucano do Mosquito,

Das Rãs Homero, e destes não desprezo,

Que escreveram matérias de mais peso

Do que eu, que canto cousa mais delgada

Mais chata, mais sutil, mais esmagada.

Quando desembarcaste da fragata,

Meu Dom Braço de Prata,

Cuidei, que a esta cidade tonta, e fátua

Mandava a Inquisição alguma estátua

Vendo tão espremida salvajola

Visão de palha sobre um Mariola.

O rosto de azarcão afogueado,

E em partes mal untado,

Tão cheio o corpanzil de godolhões,

Que o julguei por um saco de melões;

Vi-te o braço pendente da garganta,

E nunca prata vi com liga tanta.

O bigode fanado feito ao ferro

Está ali num desterro,

E cada pelo em solidão tão rara,

Que parece ermitão de sua cara:

Da cabeleira pois afirmam cegos,

Que a mandaste comprar no arco dos pregos.

Olhos cagões, que cagam sempre à porta,

Me tem esta alma torta,

Principalmente vendo-lhe as vidraças

No grosseiro caixilho das couraças:

Cangalhas, que formaram luminosas

Sobre arcos de pipa duas ventosas.

De muito cego, e não de malquerer

A ninguém podes ver;

Tão cego és, que não vês teu prejuízo

Sendo cousa, que se olha com juízo:

Tu és mais cego, que eu, que te sussurro,

Que em te olhando, não vejo mais que um burro.

Chato o nariz de cocras sempre posto:

Te cobre todo o rosto,

De gatinhas buscando algum jazigo

Adonde o desconheçam por embigo:

Até que se esconde, onde mal o vejo

Por fugir do fedor do teu bocejo.

Faz-lhe mal vizinhança a tua boca,

Que com razão não pouca

O nariz se recolhe para o centro

Mudado para os baixos lá de dentro:

Surge-lhe outra vez, e vendo a bafarada

Lhe fica a ponta um dia ali engasgada.

Pernas e pés defendem tua cara:

Balha-te; e quem cuidara,

Tomando-te a medida das cavernas

Se movesse tal corpo com tais pernas!

Cuidei, que eras rocim das alpujarrras,

E já frisão te digo pelas garras.

Um casaquim trazia sobre o couro,

Qual odre, a quem o Touro

Uma, e outra cornada deu traidora,

E lhe deitou de todo o vento fora;

Tal vinha o teu vestido de enrugado,

Que o tive por um odre esfuracado.

O que te vir a ser todo rabadilha

Dirá, que te perfilha

Uma quaresma (chato percevejo)

Por Arenque de fumo, ou por Badejo:

Sem carne, e osso, quem há ali, que creia,

Senão que és descendente de Lampreia.

Livre-te Deus de um Sapateiro, ou Sastre,

Que te temo um desastre,

E é, que por sovela, ou por agulha

Arme sobre levar-te alguma bulha:

Porque depositando-te à justiça

Será num agulheiro ou em cortiça.

Na esquerda mão trazias a bengala

ou or força, ou por gala:

No sovaco por vezes a metias,

Só para fazer enfim descortesias,

Tirando ao povo, quando te destapas,

Entonces o chapéu, agora as capas.

Fundia-se a cidade em carcajadas,

Vendo as duas entradas,

Que fizeste do Mar a Santo Inácio,

E depois do colégio a teu palácio:

O Rabo erguido em cortesias mudas,

Como quem pelo cu tomava ajudas.

Ao teu palácio te acolheste, e logo

Casa armaste de jogo,

Ordenando as merendas por tal jeito,

Que a cada jogador cabe um confeito:

Dos Tafuis um confeito era um bocado,

Sendo tu pela cara o enforcado.

Depois deste em fazer tanta parvoíce,

Que inda que o povo risse

Ao princípio, cresceu depois a tanto,

Que chegou a chorar com triste pranto:

Chora-te o nu de um roubador de falso,

E vendo-te eu direito, me descalço.

Xinga-te o negro, o branco te pragueja,

E a ti nada te aleija,

E por teu sensabor, e pouca graça

És fábula do lar, riso da praça,

Té que a bala, que o braço te levara,

Venha segunda vez a levar-te a cara.
78 Total read