Augosto dos Anjos

20 April 1884 - 12 November 1914 / Pau d'Arco

A Vitória do Espírito -

Era uma preta, funeral mesquita,
Abandonada aos lobos e aos leopardos

Numa floresta lúgubre e esquisita.
Engalanava-lhe as paredes frias

Uma coroa de urzes e de cardos

Coberta em pálio pelas laçarias.
Uma vez, aos lampejos derradeiros

Das irisadas vespertinas velas,

Feras rompiam tolos e balseiros.
E pelas catacumbas desprezadas,

Mochos vagavam como sentinelas,

Em atalaia às gerações passadas!
Um crepúsculo imenso, nunca visto

Tauxiava o Céu de grandes roxos

Da mesma cor da túnica de Cristo.
Fulgia em tudo uma estriação violeta

E um violáceo clarão banhava os mochos

Que em torno estavam da mesquita preta.
Já na eminência da amplidão sidérea

Como uma umbela, se desenrolava

A esteira astral da retração etérea.
Os astros mortos refulgiam vivos

E a noite, ampla e brilhante, rutilava

Lantejoulada de opalinos crivos.
Súbito alguém, o passo constrangendo,

Parou em frente da mesquita morta...

- Um vento frio começou gemendo.
Era uma viúva, e o olhar errante, a viúva,

Em passo lento, foi transpondo a porta,

Eternamente aberta ao sol e à chuva.
A Lua encheu o espaço sem limites

E, dentro, nos altares esboroados,

Foram caindo como estalactites
Sobre o ouro e a prata das alfaias priscas

Um dilúvio de fósforos prateados

E uma chuva doirada de faíscas.
Fora, entretanto, por um chão de onagras

Vinha passeando corno numa viagem

Um grupo feio de panteras magras.
E havia no atro olhar dessas panteras

Essa alegria doida da carnagem

Que é a alegria única das feras.
E ardendo na impulsão das ânsias doidas

E em sevas fúrias, infernais ardendo

Todas as feras, as panteras todas
Avançam para a viúva desvalida.

E raivosas, contra ela, arremetendo,

Tiram-lhe todas ali mesmo a vida.
Morria a noite. As flâmulas altivas

Do sol nascente erguiam-se vermelhas,

Como uma exposição de carnes vivas.
E iam cair em pérolas de sangue

Sobre as asas doiradas das abelhas,

E sobre o corpo da viúva exangue.
A Natureza celebrava a festa

Do astro glorioso em cantos e baladas

- O próprio Deus cantava na floresta!
Nos arvoredos rejuvenescidos,

Estrugiam canções desesperadas

De misereres e de sustenidos.
Além, entanto, na redoma clara

Que envolve a porta da região etérea,

O espírito da viúva se quedara
Ao contemplar dessa fulgente porta

E dessa clara e alva redoma aérea,

No desfilar de sua carne morta

A transitoriedade da matéria!
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