Antonio de Castro Alves

14 March 1847 – 6 July 1871 / Curralinho

O Segredo

'Agora vou dizer-te por que morro;
Mas hás de jurar primeiro,
Que jamais tuas mãos inocentes
Ferirão meu algoz derradeiro...
Meu filho, eu fui a vítima
Da raiva e do ciúme.
Matou-me como um tigre carniceiro,
Bem vês,
Uma branca mulher, que em si resume
Do tigre — a malvadez,
Do cascavel — o rancor!...
Deixo-te, pois... — Um grito de vingança? — Não, pobre criança! ...
Um crime a perdoar... o que é melhor!...
'Depois. teve razão... Esta mulher É tua e minha senhora!...
'Lucas, silêncio! que por ela implora
Teu pai... e teu irmão! ...
'Teu irmão, que é seu filho... (ó magoa e dor!)
'Teu pai — que é seu marido... e teu senhor! ...
'Juras não me vingar? — ó mãe, eu juro
Por ti, pelos beijos teus!
'— Obrigada! agora... agora
Já nada mais me demora...
Deus! — recebe a pecadora!
Filho! — recebe este adeus!'
Quando, rompendo as barras do oriente,
A estrela da manhã mais desmaiava,
E o vento da floresta ao céu levava
O canto jovial do bem-te-vi;
Na casinha de palha uma criança,
Da defunta abraçando o corpo frio,
Murmurava chorando em desvario: — Eu não me vingo, ó mãe... juro por ti!...'
Maria calou-se... Na fronte do Escravo
Suor de agonia gelado passou;
Com riso convulso murmura: 'Que importa
Se o filho da escrava na campa jurou?!...
'Que tem o passado com o crime de agora?
Que tem a vingança, que tem com o perdão?'
E como arrancando do crânio uma idéia
Na fronte corria-lhe a gélida mão...
'Esquece o passado! Que morra no olvido...
Ou antes relembra-o cruento, feroz!
Legenda de lodo, de horror e de crimes
E gritos de vítima e risos de algoz!
'No frio da cova que jaz na explanada,
— Vingança — murmuram os ossos dos meus!'
— Não ouves um canto, que passa nos ares? — Perdoa! — respondem as almas nos céus!' — 'São longos gemidos do seio materno
Lembrando essa noite de horror e traição!'
— 'É o flébil suspiro do vento, que outrora
Bebera nos lábios da morta o perdão!...'
E descaiu profundo
Em longo meditar...
Após sombrio e fero
Viram-no murmurar:
'Mãe! Na região longínqua
Onde tua alma vive,
Sabes que eu nunca tive
Um pensamento vil.
Sabes que esta alma livre
Por ti curvou-se escrava;
E devorou a bava...
E tigre — foi reptil!
'Nem um tremor correra-me
A face fustigada!
Beijei a mão armada
Com o ferro que a feriu...
Filho, de um pai misérrimo
Fui o fiel rafeiro...
Caim, irmão traiçoeiro!
Feriste... e Abel sorriu!
'De tanto horror o cúmulo, Ó mãe, alma celeste
Se perdoar quiseste,
Eu perdoei também.
Santificaste os míseros;
Curvei-me reverente
A eles tão-somente,
Somente... a mais ninguém!
'Ninguém! que a nada humilho-me
Na terra, nem no espaço!...
Pode ferir meu braço... — 'Lucas! não pode, não!
Mísero a mão que abrira
De tua mãe a cova...
O golpe hoje renova!...
Mata-me!... É teu irmão!...'
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