Antonio de Castro Alves

14 March 1847 – 6 July 1871 / Curralinho

Álvares De Azevedoi

Rebramam os ventos... Da negra tormenta
Nos montes de nuvens galopa o corcel...
Relincha—troveja... galgando no espaço
Mil raios desperta co'as patas revel.
É noite de horrores... nas grunas celestes,
Nas naves etéreas o vento gemeu...
E os astros fugiram, qual bando de garças
Das águas revoltas do lago do céu.
E a terra é medonha... As árvores nuas
Espectros semelham fincados de pé,
Com os braços de múmias, que os ventos retorcem,
Tremendo a esse grito, que estranho lhes é.
Desperta o infinito. .. Cota boca entreaberta
Respira a borrasca do largo pulmão.
Ao longe o oceano sacode as espáduas
— Encélado novo calcado no chão.
É noite de horrores... Por ínvio caminho
Um vulto sombrio sozinho passou,
Co'a noite no peito, co'a noite no busto
Subiu pelo monte, — nas cimas parou.
Cabelos esparsos ao sopro dos ventos,
Olhar desvairado, sinistro, fatal,
Diríeis estátua roçando nas nuvens,
P'ra qual a montanha se fez pedestal.
Rugia a procela — nem ele escutava!...
Mil raios choviam — nem ele os fitou!
Com a destra apontando bem longe a cidade,
Após largo tempo sombrio falou!...
II
Dorme, cidade maldita,
Teu sono de escravidão!...
Dorme, vestal da pureza,
Sobre os coxins do Sultão!...
Dorme, filha da Geórgia,
Prostituta em negra órgia
Sê hoje Lucrécia Bórgia
Da desonra no balcão!...
Dormir?!... Não! Que a infame grita
Lá se alevanta fatal...
Corre o champagne e a desonra
Na orgia descomunal...
Na fronte já tens um laço...
Cadeias de ouro no braço,
De pérolas um baraço,
—Adornos da saturnal!
Lonca!... Nem sabes que as luzes,
Que acendeu p'ra as saturnais,
São do enterro de seus brios
Tristes círios funerais...
Que o seu grito de alegria
E o estertor da agonia,
A que responde a ironia
Do riso de Satanás!...
Morreste... E ao teu saimento
Dobra a procela no céu.
E os astros — olhar dos mortos —
A mão da noite escondeu.
Vê!... Do raio mostra a lampa
Mão de espectro, que destampa
Com dedos de ossos a campa,
Onde a glória adormeceu.
E erguem-se as lápides frias
Saltam bradando os heróis:
'Quem ousa da eternidade
Roubar-nos o sono a nós?'
Responde o espectro: 'A desgraça!
Que a realeza, que passa,
Com o sangue de vossa raça,
Cospe lodo sobre vós! . . ''
Fugi, fantasmas augustos!
Caveiras que coram mais
Do que essas faces vermelhas
Dos infames pariás!...
Fugi do solo maldito...
Embuçai-vos no infinito!...
E eu por detrás do granito
Dos montes ocidentais...
Eu também fujo... Eu fugindo!...
Mentira desses vilões!.,.
Não foge a nuvem trevosa
Quando em asas de tufões,
Sobe dos céus à esplanada,
Para tomar emprestada
De raios uma outra espada,
À luz das constelações!...
Como o tigre na caverna
Afia as garras no chão,
Como em Elba amola a espada
Nas pedras — Napoleão,
Tal eu — vaga encapelada,
Recuo de uma passada,
P'ra levar de derribada
Rochedos, reis, multidões. . .!
III
'Pernambuco! Um dia eu vi-te
Dormido imenso ao luar,
Com os olhos quase cerrados.
Com os lábios — quase a falar...
Do braço o clarim suspenso,
—O punho no sabre extenso
De pedra — recife imenso,
Que rasga o peito do mar...
E eu disse: Silêncio. ventos!
Cala a boca, furacão!
No sonho daquele sono Perpassa a Revolução!
Este olhar que não se move
'Stá fito em — Oitenta e Nove —
Lê Homero — escuta Jove...
— Robespierre — Dantão.
Naquele crânio entra em ondas
O verbo de Mirabeau...
Pernambuco sonha a escada
Que também sonhou Jacó;
Cisma a República alçada,
E pega os copos da espada,
Enquanto em su'alma brada:
'Somos irmãos, Vergniaud.'
Então repeti ao povo:
—Desperta do sono teu!
Sansão — derroca as colunas!
Quebra os ferros — Prometeu!
Vesúvio curvo — não pares,
Ignea coma solta aos ares,
Em lavas inunda os mares
Mergulha o gládio no céu.
República!... Vôo ousado
Do homem feito condor!
Raio de aurora inda oculta
Que beija a fronte ao Tabor!
Deus! Por qu'enquanto que o monte
Bebe a luz desse horizonte,
Deixas vagar tanta fronte,
No vale envolto em negror?!...
Inda me lembro... Era, há pouco,
A luta!... Horror!... Confusão!...
A morte voa rugindo
Da garganta do canhão!..
O bravo a fileira cerra!...
Em sangue ensopa-se a terra!...
E o fumo — o corvo da guerra —
Com as asas cobre a amplidão...
Cheguei! . . . Como nuvens tontas,
Ao bater no monte — além,
Topam, rasgam-se, recuam...
Tais a meus pés vi também
Hostes mil na luta inglória...
...Da pirâmide da glória
São degraus... Marcha a vitória,
Porque este braço a sustém.
Foi uma luta de bravos
Como a luta do jaguar,
De sangue eurubesce a terra,
— De fogo enrubesce o ar!...
. . . Oh! . . . mas quem faz que eu não vença?
— O acaso... — avalanche imensa,
Da mão do Eterno suspensa,
Que a idéia esmaga ao tombar!...
Não importa! A liberdade
É como a hidra, o Anteu.
Se no chão rola sem forças,
Mais forte do chão se ergueu...
São os seus ossos sangrentos
Gládios terríveis, sedentos...
E da cinza solta aos ventos
Mais um Graco apareceu!...
Dorme, cidade maldita!
Teu sono de escravidão!
Porém no vasto sacrário
Do templo do coração,
Ateia o lume das lampas
Talvez que um dia dos pampas
Eu surgindo quebre as campas
Onde te colam no chão.
Adeus! Vou por ti maldito
Vagar nos ermos pauis.
Tu ficas morta, na sombra,
Sem vida, sem fé, sem luz!...
Mas quando o povo acordado
Te erguer do tredo valado,
Virá livre, grande, ousado,
De pranto banhar-me a cruz!...
IV
Assim falara o vulto errante e negro,
Como a estátua sombria do revés,
Uiva o tufão nas dobras de seu manto,
Como um cão do senhor ulula aos pés...
Inda um momento esteve solitário
Da tempestade semelhante ao deus,
Trocando frases com os trovões no espaço
Raios com os astros nos sombrios céus...
Depois sumiu-se dentre as brumas densas
Da negra noite — de su'alma irmã...
E longe... longe... no horizonte imenso
Ressonava a cidade cortesã!...
Vai! . . . Do sertão esperam-te as Termópilas
A liberdade ainda pulula ali...
Lá não vão vermes perseguir as águias,
Não vão escravos perseguir a ti!
Vai!... Que o teu manto de mil balas roto
E uma bandeira, que não tem rival.
—Desse suor é que Deus faz os astros...
Tens uma espada, que não foi punhal.
Vai, tu que vestes do bandido as roupas,
Mas não te cobres de uma vil libré
Se te renega teu país ingrato
O mundo, a glória tua pátria é!...
V
E foi-se... E inda hoje nas horas errantes
Que os cedros farfalham, que ruge o tufão,
E os lábios da noite murmuram nas selvas
E a onça vagueia no vasto sertão.
Se passa o tropeiro nas ermas devesas,
Caminha medroso, figura-lhe ouvir
O infrene galope d'Espectro soberbo,
Com um grito de glória na boca a fugir.
Que importa se o túm'lo ninguém lhe conhece?
Nem tem epitáfio, hem leito, nem cruz?...
Seu túmulo é o peito do vasto universo
o espaço—por cúpula — as conchas azuis!...
. . . Mas contam que um dia rolara o oceano
Seu corpo da praia, que a vida lhe deu...
Enquanto que a glória rolava sua alma
Na$ margens da história, na areia do céu!...
Oitavas a Napoleão
(Tradução do espanhol, de LOZANO)
Águia das solidões!. . . Ninho atrevido
Foram-te as borrascosas tempestades,
Flamígero cometa suspendido
Sobre o céu infinito das idades.
Tu que, no lago intérmino do olvido,
Lançaste tuas régias claridades...
Deus caído do trono dos mais deuses...
Quem recebeu teus últimos adeuses?...
Não foram as Pirâmides, que ouviram
De teus passos o som e se inclinaram...
Nem as águas do Nilo, que te viram,
E co'as ondas teu nome murmuraram...
Não foram as cidades, que brandiram
As torres como facho... e te aclararam..
Quem foi? Silêncio!... trêmulo de medo
Vejo apenas—um mar... vejo—um rochedo...
A terra, o mar, os céus... espaço estreito
Eram p'ra tua planta de gigante,
Para tecto dos paços teus foi feito
O firmamento colossal, flutuante
Como diadema — O!; sóis... E como leito
O antártico pólo de diamante...
Teu féretro qual foi?... Titão do Sena
O penhasco fatal de Santa Helena...
Assassina do Encélado da guerra
Só tu foste, Albion... do mar senhora..
Por quê? Porque um pedaço aí de terra
Foi pedir-te o gigante em negra hora...
E lhe deste um penhasco... Oh! Lá s'encerra
Tua lenda mais hórrida... Traidora!
Lá seu espectro envolta na mortalha
Aos quatro céus a maldição espalha...
Ao leão, que temias, enjaulaste;
E de longe escutando seu rugido,
Tu, senhora do mar... tu desmaiaste!
Pelo punhal traidor ele ferido
Caiu-te aos pés... Então tu respiraste,
Cobarde vencedora do vencido...
Nem mesmo todo o oceano poderia
Lavar este padrão de covardia...
Tu não és tão culpada!... Aonde estava
A França tão potente e tão temida?...
Oh! por que o não salvou?... se o contemplava
Lá dos gelos dos Alpes—soerguida!?...
E ele que a fez tão grande?... Ela folgava!...
Enquanto ao longe do colosso a vida,
Como um vulcão antigo e moribundo
Lento expirava nesse mar profundo.
Boa-Noite
Veux-tu donc partir? Le jour est encore éloigné
C'était le rossignol et non pas l'aloustte
Dont le chant a frappé ton oreille inquiete;
Il chante la nuit sur les branches de ce grenadier,
Crois-moi, cher ami, c'était le rossignol.
SHAKESPEARE
Boa-noite, Maria! Eu vou-me embora.
A lua nas janelas bate em cheio.
Boa-noite, Maria! É tarde... é tarde...
Não me apertes assim contra teu seio.
Boa-noite!... E tu dizes — Boa-noite.
Mas não digas assim por entre beijos...
Mas não mo digas descobrindo o peito
— Mar de amor onde vagam meus desejos.
Julieta do céu! Ouve... a calhandra
Já rumoreja o canto da matina.
Tu dizes que eu menti?... pois foi mentira...
. . . Quem cantou foi teu hálito, divina!
Se à estrela-d'alva os derradeiros raios
Derrama nos jardins do Capuleto,
Eu direi, me esquecendo d'alvorada:
'É noite ainda em teu cabelo preto...'
E noite ainda! Brilha na cambraia
—Desmanchado o roupão, a espádua nua —
O globo de teu peito entre os arminhos
Como entre as névoas se balouça a lua...
É noite, pois! Durmamos, Julieta!
Recende a alcova ao trescalar das flores,
Fechemos sobre nós estas cortinas...
—São as asas do arcanjo dos amores.
A frouxa luz da alabastrina lâmpada
Lambe voluptuosa os teus contornos...
Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos
Ao doudo afago de meus lábios mornos.
Mulher do meu amor! Quando aos meus beijos
Treme tua alma, como a lira ao vento,
Das teclas de teu seio que harmonias,
Que escalas de suspiros, bebo atento!
Ai! Canta a cavatina do delírio,
Ri, suspira, soluça, anseia e chora...
Marion! Marion!... É noite ainda.
Que importa os raios de uma nova aurora?!...
Como um negro e sombrio firmamento,
Sobre mim desenrola teu cabelo...
E deixa-me dormir balbuciando:
—Boa-noite! —, formosa Consuelo!...
Adormecida
Ses longs cheveux épars la couvrent tout entière
La croix de son collier repose dans sa main,
Comme pour témaigner qu'elle a fait sa prière.
Et qu'elle va la faire en s'éveiliant demain.
A DE MUSSET
Uma noite eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.
'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte
Via-se a noite plácida e divina.
De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras
Iam na face trêmulos — beijá-la.
Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe. . . a flor fugia. . .
Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!
E o ramo ora chegava ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
P'ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...
Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
'ó flor! —tu és a virgem das campinas!
'Virgem!—tu és a flor da minha vida!.. .'
Jesuítas
(SÉCULO XIII)
Ó mes frères, je viens vous apporter mon Dieu,
Je viens vous apporter ma tête!
V. HUGO (Chatiments)
Quando o vento da Fé soprava Europa,
Como o tufão, que impele ao ar a tropa
Das águias, que pousavam no alcantil;
Do zimbório de Roma — a ventania
O bando dos Apost'los sacudia
Aos cerros do Brasil.
Tempos idos! Extintos luzimentos!
O pó da catequese aos quatro ventos
Revoava nos céus...
Floria após na Índia, ou na Tartária,
No Mississipi, no Peru, na Arábia
Uma palmeira — Deus! —
O navio maltês, do Lácio a vela,
A lusa nau, as quinas de Castela,
Do Holandês a galé
Levava sem saber ao mundo inteiro
Os vândalos sublimes do cordeiro,
Os átilas da fé.
Onde ia aquela nau?—Ao Oriente.
A outra? — Ao pólo. A outra? — Ao ocidente.
Outra? — Ao norte. Outra? — Ao sul.
E o que buscava? A foca além no pólo;
O âmbar, o cravo no indiano solo
Mulheres em 'Stambul.
Grandes homens! Apóstolos heróicos!...
Eles diziam mais do que os estóicos:
'Dor, — tu és um prazer!
'Grelha, —és um leito! Brasa,—és uma gema!
Cravo, — és um cetro! Chama, — um diadema
Ó morte, — és o viver!'
Outras vezes no eterno itinerário
O sol, que vira um dia no Calvário
Do Cristo a santa cruz,
Enfiava de vir achar nos Andes
A mesma cruz, abrindo os braços grandes
Aos índios rubros, nus.
Eram eles que o verbo do Messias
Pregavam desde o vale às serranias,
Do pólo ao Equador...
E o Niagara ia contar aos mares. . .
E o Chimborazo arremessava aos ares
O nome do Senhor!...
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