Álvares de Azevedo

the Brazilian Lord Byron] (12 September 1831 - 25 April 1852 / São Paulo

Sombra de D. Juan

Cerraste enfim as pálpebras sombrias!...
E a fronte esverdeou da morte à sombra,
Como lâmpada exausta!
E agora?... no silêncio do sepulcro
Sonhas o amor... os seios de alabastro
Das lânguidas amantes?

E Haidéia, a virgem, pela praia errando,
Aos murmúrios do mar que lhe suspira
Com incógnito desejo
Te sussurra delícias vaporosas...
E o formosoestrangeiro adormecido
Entrebeija tremendo?

Ou a pálida fronte libertina
Relembra a tez, o talhe voluptuoso
Da oriental seminua?
Ou o vento da noite em teus cabelos
Sussurra e lembra do passado as nódoas
No túmulo sem letras?

Ergue-te, libertino! eu não te acordo
Para que a orgia te avermelhe a face
Que a morte amarelou...
Nem para jogo e noites delirantes,
E do ouro a febre e da perdida os lábios
E a convulsão noturna!

Não, ó belo Espanhol! Venho sentar-me
À borda do teu leito, porque a febre
Minha insônia devora...
Porque não durmo quando o sonho passa
E do passado o manto profanado
Me roça pela face!

Quero na sombra conversar contigo,
Quero me digas tuas noites breves,
As febres e as donzelas
Que no fogo do viver murchaste ao peito!
Ergue-te um pouco da mortalha branca,
Acorda, Don Juan!

Contigo velarei: do teu sudário
Nas dobras negras deporei a fronte,
Como um colo de mãe...
E como leviano peregrino
Da vida as águas saudarei sorrindo
Na extrema do infinito!

E quando a ironia regelar-se
E a morte me azular os lábios frios
E o peito emudecer...
No vinho queimador, no golo extremo,
Num riso... à vida brindarei zombando
E dormirei contigo!

II
Mas não: não veio na mortalha envolto
Don Juan, seminu, com rir descrido,
Zombando do passado,
Só além... onde as folhas alvejavam
Ao luar que banhava o cemitério,
Vi um vulto na sombra.

Cantava: ao peito o bandolim saudoso
Apertava, qual nu e perfumado
A Madona seu filho;
E a voz do bandolim se repassava...
Mais languidez bebia ressoando
No cavernoso peito.

Do sombrero despiu a fronte pálida,
Ergueu à lua a palidez do rosto
Que lágrimas enchiam...
Cantava: eu o escutei... amei-lhe o canto,
Com ele suspirei, chorei com ele:
— O vulto era Don Juan!

III
A CANÇÂO DE DON JUAN
'Ó faces morenas! ó lábios de flor!
Ouvi-me a guitarra que trina louçã,
Vos tragou meu peito, meus beijos de amor
Ó lábios de flor,
Eu sou Don Juan!

'Nas brisas da noite, no frouxo luar,
Nos beijos do vento, na fresca manhã
Dizei-me: não vistes, num sonho passar,
Ao frouxo luar,
Febril Don Juan?

'Acordem, acordem, ó minhas donzelas,
A brisa nas águas lateja de afã!
Meus lábios têm fogo e as noites são belas
Ó minhas donzelas,
Eu sou Don Juan!

'Ai! nunca sentistes o amor d'espanhol!
Nos lábios mimosos de flor de romã
Os beijos que queimam no fogo do sol!
Eu sou o espanhol:
Eu sou Don Juan!

'Que amor, que sonhos no febril passado!
Que tantas ilusões no amor ardente!
E que pálidas faces de donzela
Que por mim desmaiaram docemente!

'Eu era o vendaval que às flores puras
Do amor nas manhãs o lábio abria!
Se murchei-as depois... é que espedaça
As flores da montanha a ventania!

'E tão belas, meu Deus! as níveas pérolas
Mergulhei-as no lodo uma por uma,
De meus sonhos de amor nada me resta!
Em negras ondas só vermelha escuma!

'Anjos que desflorei! que desmaiados
Na torrente lancei do lupanar!
Crianças que dormiam no meu peito
E acordaram da mágoa ao soluçar!

'E não tremem as folhas no sussurro,
E as almas não palpitam-se de afã,
Quando entre a chuva rebuçado passa
Saciado de beijos Don Juan?'

IV
Como virgem que sente esmorecer
Num hálito de amor a vida bela,
Que desmaia, que treme...
Como virgem nas lentas agonias
Os seus olhos azuis aos céus erguendo
Co'as mãos níveas no seio...

Pressentindo que o sangue lhe resfria
E que nas faces pálidas a beija
O anjo da agonia...
Exala ainda o canto harmonioso...
Casuarina pendida onde sussurra
O anoitecer da vida...

Assim nos lábios e nas cordas meigas
Do palpitante bandolim a mágoa
Gemia como o vento...
Como o cisne que bóia, que se perde...
Na lagoa da morte geme ainda
O cântico saudoso!

Mas depois no silêncio uma risada
Convulsiva arquejou... rompeu as cordas
Das ternas assonias,
Rompeu-as e sem dó... e noutras fibras
Corria os dedos descuidoso e frio
Salpicando-as d'escárnio...

V
'Os homens semelham as modas de um dia,
E velha e passada
A roupa manchada...
Porém quem diria
Que é moda de um dia,
Que é velho Don Juan?!

'Os anos que passem nos negros cabelos
Branqueiem de neve
As c'roas que teve!
Dizei, anjos belos
De negros cabelos,
Se é velho Don Juan!

'E quando no seio das trêmulas belas
De noite suspira
E nuta e delira...
Que digam pois elas
As trêmulas belas
Se é velho Don Juan!

'Que o diga a sultana, a violenta espanhola,
A loira alemã
E grega louçã...
Que o diga a espanhola
Que a noite consola...
Se é velho Don Juan!

'............................................ ...............
.............................. ...............................'

VI
Era longa a canção... Cantou; e o vento
Nos ciprestes com ele esmorecia!
Pendeu a fronte, os lábios
Emudeceram... como cala o vento
Do trópico na podre calmaria...
Cismava Don Juan.
70 Total read