Álvares de Azevedo

the Brazilian Lord Byron] (12 September 1831 - 25 April 1852 / São Paulo

Na várzea

Como é bela a manhã! Como entre a névoa
A cidade sombria ao sol clareia
E o manto dos pinheiros se aveluda...
E o orvalho goteja dos coqueiros...
E dos vales o aroma acorda o pássaro...
E o fogoso corcel no campo aberto
Sorve d'alva o frescor, sacode as clinas,
Respira na amplidão, no orvalho rola,
Cobra em leito de folhas novo alento
E galopa nitrindo!

Agora que a manhã é fresca e branca
E o campo solitário e o val se arreia...
Ó meu amigo, passeemos juntos
Na várzea que do rio as águas negras
Umedecem fecundas...

O campo é só: na chácara florida
Dorme o homem do vale e no convento
Cintila a medo a lâmpada da virgem,
Que pálidas vestais no altar acendem!
Tudo acorda, meu Deus, nestas campinas!
Os cantos do Senhor erguem-se em nuvens,
Como o perfume que evapora o leito
Do lírio virginal!

Acorda, ó meu amigo: quando brilha
Em toda a natureza tanto encanto,
Tanta magia pelo céu flutua
E chovem sobre os vales harmonias,
É descrer do Senhor dormir no tédio,
É renegar das santas maravilhas
O ardente coração não expandir-se
E a alma não jubilar dentro do peito!

Lá onde mais suave entre os coqueiros,
O vento da manhã nas casuarinas
Cicia mais ardente suspirando,
Como de noite no pinhal sombrio
Aéreo canto de não vista sombra,
Que enche o ar de tristeza e amor transpira...
Lá onde o rio molemente chora
Nas campinas em flor e rola triste...
Alveja, à sombra, habitação ditosa,
Coroa os frisos da janela verde
A trepadeira em flor do jasmineiro
E pelo muro se avermelha a rosa.
Ali quando a manhã acorda a bela,
A bela, que eu sonhei nos meus amores...
Ao primeiro calor do sol d'aurora
Entorna-se da flor o doce aroma,
Inda mais doce em matutino orvalho,
Nas tranças negras da donzela pálida,
Mais bela que o diamante se aveluda,
Camélia fresca, inda em botão, tingida
De neve e de coral... no seio dela
Não reluz o colar... em negro fio
A cruz da infância melhor guarda o seio,
Que o amor virginal beija tremendo
E os ais do coração melhor perfuma...

Vem comigo, mancebo: aqui sentemo-nos...
Ela dorme: a janela inda cerrada
Se enche de rosas e jasmins, à noite...
E as flores virgens com o aberto seio
Um beijo da donzela ainda imploram.

Mais doce o canto foge de mistura
Co'as doces notas do violão divino!
Anjo da vida te verteu nos lábios
O mel dos serafins que a voz serena,
Que a transborda de encanto e de harmonia
E faz no eco propulsar meu peito!

Suspire o violão: nos seus lamentos
Murmura essa canção dos meus amores,
Que este peito sangrento lhe votara,
Quando a seus pés, acesa a fantasia,
Em doce engano derramei minh'alma!

Quando a brisa seus ais melhor afina,
Quando a frauta no mar branda suspira,
Com mais encanto as folhas do salgueiro
Debruçam-se nas águas solitárias
E deixam, gota a gota, o argênteo orvalho
Como prantos nas folhas deslizar-se.

Quando a voz do cantor perder-se, à noite,
Na margem da torrente, ou nas campinas,
Ou no umbroso jardim que flores cobrem...
Mais doce a noite pelo céu vagueia,
Melhor florescem as noturnas flores...
E o seio da mulher, que a noite embala,
Pulsa quente e febril com mais ternura!

Se o anjo de meus tímidos amores
Pudesse ouvir-te os cândidos suspiros,
Que a minha dor de amante lhe revelam...
Se ela acordasse, nos cabelos soltos
Inda o semblante sonolento e pálido
E o seio seminu e os ombros níveos
E as trêmulas mãos cobrindo o seio...
Se esta janela num instante abrisse
A fada da ventura, embora apenas
Um instante... sequer... Meus pobres sonhos,
Como saudosos vos murchais sedentos!
Flores do mar que um triste vagabundo
Arrancou de seu leito umedecido
E grosseiro apertou nas mãos ardentes,
Eu morro de saudade! e só me nutre
Inda nas tristes, desbotadas veias
O sangue do passado e da esperança!
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